segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Estreita

Prédios, muros,
caminhos como ruas,
ruas que nem são caminhos,
apenas fluxo...

Pêndulo.
Gente. Carros.
Ir. Voltar.
Voltar e Ir,
novamente,
insistentemente,
apressadamente.
impacientemente,
constantemente,
hermeticamente,
isoladamente,
apertadamente.

Sem mente.
Sem dúvida. Sem porquê.

Estreito. Compacto. Fechado. Enlatado. Pronto.

O largo nunca é dado.
Precisa ser tomado
de um olhar sem objeto.

A linha não termina na moldura.
A linha penetra o quadro.
Invade, inverte, subverte, reinventa.

A vida não termina na rotina.
A vida...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O Contrário da Reta

Meus dias não são folhas que caem,
numa árvore que se renova.

São sementes que eu planto em mim.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Labirinto

Meu labirinto é um círculo fechado.*

Imagens, desenhos, marcas...**

Querem que eu veja,
que lembre, que guarde.

E assim desaprendendo a ver,
desaprenda a julgar,
desaprenda a agir,
desaprenda a ser,
para ser o que querem que eu seja.

E dizem: rápido.
Sem dar motivos ou razões.

E dizem: mais.
Mesmo quando há o suficiente.

E dizem: vença.
Ainda que não haja vitória na guerra.

E dizem que o ideais morreram.

Porque ninguém diz basta.

Mas os ideais nunca morrem.

O que morre é capacidade de ver.

.................................................
Notas do autor:

*The Waste Land, T. S. Eliot. I. THE BURIAL OF THE DEAD
"I see crowds of people, walking round in a ring".
(Eu vejo uma grande multidão, dando voltas em um círculo.)

*Ortodoxia, Chesterton. II- O Maníaco
Um círculo pequeno é exatamente tão infinito quando um círculo grande; mas, embora seja exatamente tão infinito, não é tão grande. Da mesma forma a explicação insana é exatamente tão completa como a do sensato, mas não tão abrangente. Uma bala é exatamente tão redonda como o mundo, mas não é o mundo.
(...)
No momento em que a mera razão entra em movimento, ela se move no velho sulco circular; ele dará voltas e mais voltas em seu círculo lógico, exatamente como um homem num vagão de terceira classe do Inner Circle 4 ficará girando à toa nessa linha, a não ser que execute o voluntário, vigoroso e místico ato de descer na Rua Gower.


**Rilke, A Pantera
O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.
Fonte: Rilke, R. M. 1993. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1907

domingo, 19 de setembro de 2010

Expresso Nacional


Marcha. Entre pistões, apitos, fumaças. Marcha.

Ferro duro de consciências.

Marcha.

Em outras partes,
trens mais rápidos
ameaçam a viagem.

Lança o passado na fornalha,
queima e esquece.

Milhões de bocas famintas,
insaciáveis,
desejam chegar.

"Guardem a fome de hoje,
amanhã haverá pão!"

Silenciosamente milhões queimam.

Rios para eletricidade.
Florestas para lavoura.
Mares para o petróleo.
Montanhas para o minério.

Queima-se também o futuro.

No primeiro vagão,
ricos mais ricos,
seguros do direito de serem ricos.

No último, sem banheiros,
o esgoto corre entre os bancos.
Mas tem tv, novela e futebol.

E o trem embala,
veloz, acelerado,
máquina dos sonhos.

Seremos a locomotiva mais rápida do mundo.

Vamos chegar.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O que de mim

No vazio das perguntas descubro-me liberdade.

O que de mim se encontro a resposta fatal?

Viver exige um desconhecimento infinito...

Amplo, irrestrito, invencível.

Aos diabos com os completos,
os que precisam de muletas que os prendam ao viável.

Existir é estar de fronte ao impossível.

Ah Prometeu...

O fogo que roubaste condenou-nos ao mesmo destino.

Renascemos a cada dia para sermos novamente devorados pela dúvida.

Nos cuidados da infância aprendemos o mundo,
enquanto outros carregavam o fardo.

Já não posso deixar de enfrentar a miséria humana.

E como seguir se já não há estrada?

Eu nessa ilha cercada de mundo de todos os lados?

Como vivo é tudo que tenho.

Não sei dar lições ou desvendar mistérios.

Sei viver.

terça-feira, 23 de março de 2010

Vendedor de Chocolate


Vendia, pobre, homenino
chocolates doces, como açúcar.

Comprava e vendia,
vendia e comprava,
a vida.

Compravam, passavam,
olhavam, passavam,
desviavam, passavam,
sorriam, passavam,
sonhavam, passavam,
esqueciam, passavam,
passavam, passavam.

Capitalista, lucrava seus vinténs,
não era rico, homenino,
embora nas mãos
chocolates doces, como açúcar.


Aprendeu logo o ofício da vida,
comprava e vendia,
vendia e compra,
na rua, em frente
ao escritório,
à farmácia,
ao colégio.
à igreja,
à loja de sapatos chiques,
à camisaria social,
a tanta coisa que nesse mundo há.

Homenino, passava fome,
quando tempo passava,
e chocolate doce, como açúcar,
nas mãos.

Fome de tanta coisa que nesse mundo há.
.....

Diálogo com a poesia "A morte do Leiteiro" de Carlos Drummond de Andrade

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Flor de Papel

Quando nada existe, tudo cria.

Das mãos pesadas pendem frutos
severos, duros,
aqui e ali.

Acende-se uma fraca luz,
e das sombras nascem filhos,
sem berço, sem abrigo.

Nascem para serem deuses de lata,
arquétipo de uma humanidade impossível.

Não o Amor, não o Ódio. Um espelho.

Ora, o que não é conceito,
tampouco pode ser contido.

Vai! Arrancai as flores, façamo-nas de papel.
Sem perfume possa a vida ser real.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Mensagem

Essa é a única coisa que leva um filósofo a filosofar, um escritor a escrever: deixar uma mensagem na garrafa porque, de alguma maneira, aqueles que virão poderão acreditar ou achar belo aquilo em que ele acreditou ou achou belo.
(Umberto Eco - Em que crêem os que não crêem?)
Estive aqui, fui humano.

Não jugueis nosso valor pelas obras.
Encontramos inúmeras dificuldades,
e não pudemos compreender onde estávamos.

No mundo havia uma ordem, uma lei,
um jeito de contar os fatos.
Doutrinados na infância,
nossos olhos foram arrancados.

Vagávamos.

Alegorias coloridas, apelos ao desejo,
símbolos, câmaras de entretenimento,
havia um mundo fabricado,
fiel àqueles ensinamentos juvenis,
e permanecemos cegos.

Um rio de esgoto nos dizia que havia algo errado.
Mas como ele sempre estava lá, e sempre passamos,
acreditamos nele também, e que rios deveriam ser esgoto.

Algumas vezes ficamos lúcidos,
afinal havia ainda algo de verdadeiro em nós.

A visão foi terrível.

Não seria possível continuar
sem fechar novamente os olhos.

Adormecemos agora por vontade própria.

Poucos entre nós foram capazes de não apagar aquela imagem.
Chamamo-lhes santos, heróis, a maioria apenas loucos.

Nosso sono era atormentado.
Guerras, catástrofes naturais, pestes,
colapsos econômicos e políticos,
nunca houve paz.

Como personagens, vestíamos máscaras,
encenávamos uma organização social.
Brincávamos de polícia e ladrão,
morríamos, matávamos.

Ao final,
a vida nos era tomada de volta,
e percebíamos que havíamos também nós cegado nossos filhos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Um dia a frente

Acordo calado em desacordo com a cama.
Cobertores demais. Lençóis perfumados.
Arrisco-me a tirar sem pressa meu pijama.
É preciso tempo para saber-me acordado.

Um dia a frente, todo dia, todo um dia.
Faço minha previsão do tempo, chove.
Na geladeira, um queijo em finas fatias.
Pó, água quente, café, copo, um gole.

Ligo a TV. O mundo acontece, morre.
Desejo o novo carro novo do comercial.
Cerveja, futebol, gols, um tênis corre.
Fico sério agora. Notícias no jornal.

Arrumo o cabelo. Escovo os dentes.
Revejo as olheiras de sono, rugas.
O tempo pesa anos de repente.
Esqueço. Vou viver outras lutas.

A chave. O cel. As contas. A carteira.
Absoluta atenção, lembro o indispensável.
Abro o portão. Viro rápido a direita.
Sei o caminho. Sigo. Estou no horário.

Um dia a frente, todo dia, todo um dia.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O homem está nu

Um grito de escândalo rompe a praça.

O homem está nu.

Mocinhas delicadas tapem os olhos,
guardem-se de ver um corpo humano.
Mães afastem seus filhos do perigo, 
protejam sua infância de uma blasfêmia.

O homem está nu.

Cubramo-no de miséria, de sujeira,
de egoísmo, de descaso, de doenças,
humilhemos seu orgulho de ser gente.

O homem está nu.

Vistamo-no com roupas bem passadas,
com ódios, com ganância, com mentiras,
ensinemos a rotina de nossos hábitos.
Que ele saiba tomar café e coca-cola.

O homem está nu.

Coloquemo-no na escola, no curral, 
seja uma ovelha entre tantas outras.
Aprenda que no mundo há mestres,
doutores, professores, e alunos,
e a matéria reprova e aprova em testes.

O homem está nu.

Façamos dele um médico, um engenheiro,
um dentista. Aprenda um trabalho qualquer
com que possa ganhar seu próprio pão
sendo um burocrata deprimido.

O homem está nu.

Ensinemo-lhe a poupar para se endividar,
a consumir coisas fúteis, a ver televisão,
a acreditar em jornais e revistas semanais,
a medir seu grau de informação longe das ruas.

O homem está nu.

Depositemos nele nossa vergonha descarada,
matemos essa natureza rebelde!
Roubemos seus ideais, suas crenças, 
sua juventude nobre e sonhadora.

O homem está nu.

Demo-lhe uma casa para se abrigar de homens,
que como ele ousaram um dia ser nus.
No calor doméstico envelheça calado,
tenha mulher, filhos e um cachorro vila-lata.

O homem está nu.

Esqueça a energia de estar vivo, 
de sentir o vento, de tomar chuva.
Que os cobertores o façam duvidar do frio,
da noite, dos perigos de ser.

O homem está nu. Quem não está?

domingo, 9 de agosto de 2009

Não me ensine o que é amar

Mostra-me sua vida,
deixa eu aprender dela.


Ou não aprendeste a cuidar das flores?
A semear amigos? A pintar com cores
o mundo posto diante de sua janela?

Cuida que vales o quanto amas,
nenhum centavo a mais.

Um dia me disseram que gente,
como eu, como você, morre de fome.

Mas é mentira. Elas morrem de egoísmo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Conchas

Procuro amigos como quem cata conchas,
entre praias, areias e pedras escorregadias.
Não tenho pressa. Escolho. Pulo as ondas.
Deixo o tempo me entreter em suas manias.

Quando encontro, ponho logo na coleção,
aquele lugar reservado desde sempre.
Alguns dão trabalho, peças exigentes,
outros acomodam-se dóceis ao coração.

O mar as vezes me traz algas, guardo-as também.
Não sou devoto das formas convencionais.
No mais, não sou fiscal de conchas. Que mal tem
se não pergunto nem exijo credenciais?

Arrisco. Meto a mão. Danem-se os caranguejos.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

As Cores do Silêncio

Mais que ausência de palavras, supressão de ruídos ou alheamento dos sons do mundo, a série As Cores do Silêncio representam-no como aquela condição íntima para a escuta. Aqui visão, tato, paladar, olfato e audição silenciam, o ser humano como um todo se deixa arrebatar, esquecer e se tornar parte. Paulatinamente serão acrescentadas novas cores a série inicial, bem como complementadas as já publicadas.

Silêncio Azul

Ergueu-se na imensidão feito um pássaro recém-saído do ninho. Não sentia em seu peito a novidade, mas uma viva sensação de retorno, como se aquele céu já fizesse parte de suas memórias mais antigas. O vento o empurrava para cima, era um cavaleiro a galopar em sua montaria alada. Ícaro não falhou em sua tentativa de ser um deus. Voar é ser infinito.

Silêncio Verde

Até onde seu ser podia se estender, folhas unidas faziam da copa das árvores um tapete de incalculáveis tons de verde. Amarelos e rosas intrometidos eram incapazes de estender seus domínios além de pontos isolados ou pequenas moitas, resignados ao papel de simples enfeites. O canto dos pássaros emergia em ruído múltiplo de seres, somados, porém únicos, uma orquestra de instrumentos diversos e harmônicos. Sua melodia era a própria voz da natureza.

Silêncio Verde Esmeralda

Deitado sobre uma cama de ondas, adormecia embalado pelo movimento do barco. O anzol teimava em não obter sucesso. Entre incontáveis cardumes de peixes, não havia um que desse atenção a sua emboscada. Na expectativa de sua presa, era ele mesmo prisioneiro do mar em sua cela flutuante. E poderia pedir ao céus a pena perpétua.

Silêncio Amarelo

O frio não diminui sob o Sol, ineficaz para conter aquela gélida manhã. Contudo, sua presença aquecia a alma. O Sol não lhe trazia calor, dava-lhe um espetáculo, um prenúncio da Primavera que logo se estabeleceria em lugar do Inverno, e isso era-lhe suficiente naquele momento em que a matéria humana parecia também congelar-se no gelo das nevascas. Na escuridão basta-lhe o brilho.

Silêncio Laranja

O dia se despedia, mas não sem estender no horizonte o testamento de sua presença. Como um exército em fuga a lançar no campo de batalha um mar de despojos embebidos em sangue, o Sol buscava refugio em outras terras deixando atrás de si um rico tesouro abandonado de nuvens douradas.

Silêncio Vermelho

O ferro da lâmina fazia se sentir no sangue em sua boca. Ele, guerreiro antes invencível, era agora presa da dor. Jamais poderia supor uma morte diante de um inimigo tão sem valor, mas seus braços já haviam perdido o vigor e a destreza da juventude. Um adversário fácil, agora seu algoz. Sonhara com um sepultamento de herói, contudo já não espera nada. Seu corpo deixa-se tombar para trás em uma última retirada. Os olhos fixos do agressor não exigem novo golpe. Está o equilíbrio da vida nele para sempre abalado, seu templo de deuses e superstições são ruínas prontas a desabar.

Silêncio Rosa

Seus lábios se tocavam com a pressa de quem estava há muito faminto. Estavam sozinhos, não havia ninguém para incomodá-lo, ninguém para interromper ou interferir na busca de um pelo outro. Contudo, a ânsia não exigia agora outra contemplação que a própria realização do desejo. E esse exigia-se imediato.

Silêncio Negro

Um luto terrível tomou posse de seus ossos. Era o fim da espera, o fim da esperança, era a evidência do que tanto havia negado a aceitar nas palavras dos amigos que lhe apontavam a busca como mal fadada. O conhecimento da verdade roubou-lhe a crença num mundo já não mais existente, estava diante de um desenlace sem volta, a certeza da morte.

Silêncio Cinza

Nuvens cobriam com uma densa mortalha aquele dia macabro. Iria se repetir novamente a enchente da qual havia mal acabado de recompor-se. Um tipo de resignação fazia sentir até mesmo nos pássaros em sua busca por abrigo frente ao vento cada vez mais forte. Ainda guardava a esperança de chuva mudar de direção, de um sopro divino levá-la a terras secas e áridas, e afastá-la das terras onde sua presença havia se tornado um castigo, um dilúvio a matar no ventre o esforço de edificar. Contudo, o movimento da natureza mais uma vez anunciava a catástrofe. Não havia nele mais o desejo da fuga, a angústia de ser também vítima da tempestade, mas começa a despertar-lhe a necessidade de ser batizado uma vez mais naquelas águas para ser então lavado de uma vez por todas de sua crença no futuro.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Homenagem a um amigo

"Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele fica só. 
Mas, se morre, produz muito fruto."
(João 12,24)

Quis Deus fazer da lágrima a chuva mais humana
para que no deserto da morte pudesse nascer amor.
E então o raio já não fere, ilumina a saga, a gana,
de quem soube fazer-se no frio da vida, calor. 

Novos passos, nova estrada, agora sem despedida.
Pisada a terra batida, resta alçar um vôo mais largo.
Ficou pequeno o mundo, já não cabias na mesma lida,
num palco mais amplo havia pressa no seu encargo.

Resta agradecer a boa companhia, o sorriso fácil,
as inúmeras horas inúteis desperdiçadas com os amigos.
Os sonhos que tinhas, o inacabado, os talvez inimigos,
deixas para que voando nas alturas sejas mais ágil. 

Traremos no peito o remo que usaste entre amigos.*

Até logo Edu.
............................................................

Homenagem ao amigo Prof. Eduardo Brito falecido hoje.
Eduardo Manoel de Brito

*referência a Odisséia, Homero.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Saudade

Saudade é ter nos braços a ausência
de quem foi, mas ainda permanece,
dor porta-retratada* em resistência
na luta contra o que não se esquece.

Cheiro de cravo** cravado no peito,
vazio insepulto entre fantasmas vivos
como a morte, pronto escrever o feito
numa lápide de retratos antigos.

Amor no tempo passado presente
conjugado em cada gesto do existir
como sacrifício de um fiel penitente.


..............................................................
*neologismo - verbo porta-retratar
**Cravo-de-defunto - flor comum em cemitérios

Te Tocar

O desejo modela meu espírito
como as ondas desenham o mar...

Somos terra e água em arrebentação
quando meu corpo encontra seus braços.
Lanço-me a conquista, mas me desfaço
sob o toque suave de suas mãos.

E nessa entrega mútua do movimento,
invadindo e recuando, tomando e sendo tomado,
nos tornamos praia selvagem para o vento
em beijos e espuma, entrega e desacato.


Amor Humano

O amor é uma certeza que acontece
em meio a incerteza certa da vida,
um profeta a invadir nossa ermida
com a liturgia própria de sua prece.

Ser divino, sem deixar de ser profano,
mistério do próprio Deus no humano.
Razão que não sendo feita de razões,
responde as mais profundas questões.

É como o mais belo passarinho!
Morre se preso em nossa mão,
mas aberta a porta do coração
lá serenamente faz seu ninho.

Ninguém sabe seu princípio ou destino,
nem há quem não reconheça sua estrada
quando a lógica dá lugar ao desatino
e viver é lembrar da pessoa amada!

E assim faço a mim um estrangeiro
perdido nesse país de encantamento...
Amor! Se sois da forja da vida ferreiro
chamarei aos teus golpes sofrimento?

Feira Autoral

Palavra, palavra, palavra,
palavra privatizada.

Livros, jornais e revistas,
cultura pasteurizada.

É puro néctar do lucro!

Quem for pobre não paga,
mas também não leva.

Traz a vasilha. Traz a mente vazia.

Pode chegar freguesia,
arte é mercadoria.

Aproveite a promoção,
leva uma música e só paga um tostão.

Um real. Um real.
História fresquinha!

Pechincha. Pechincha.
Informação já cortada e embalada.

Agora são duas caixas, duas caixas.
Só não leva conteúdo para casa
quem não quiser!

Tem troco para vinte?

No Meio do Esgoto

No meio do esgoto tinha uma ponte
tinha uma ponte no meio do esgoto
tinha uma ponte
no meio do esgoto tinha uma ponte.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do esgoto
tinha uma ponte
tinha uma ponte no meio do esgoto
no meio do esgoto tinha uma ponte.

Versão paulistana da poesia "No meio do caminho", Carlos Drummond de Andrade. Uma
homenagem aos construtores da Ponte Estaiada sobre o Rio Pinheiros no Bairro do Morumbi
em São Paulo.

Cem Anos de Revolução

O povo clama mudança!
Esgotaram todos os meios.
Lutemos pela esperança!
Morramos por seus anseios!

Armas à mão, revolução!
A história jamais vai esperar
por quem não quiser lutar!
Só a força muda a nação!

Algumas décadas depois...

Os avanços foram notáveis!
Nunca houve tal progresso!
Ficando as coisas estáveis
logo reabrirá o congresso.

A imprensa é livre e aberta,
não existe censura no país.
O governo está sempre alerta
pra escutar o que povo diz.

Mais algumas décadas...

A fome está superada.
Não existe mais corrupção.
Amanhã haverá passeata
para apoiar a revolução.

Traidores seguem atuantes
tentando novos levantes.
Devemos estar vigilantes
agora ainda mais do que antes.

Cem anos depois...

O povo clama mudança!
Esgotaram todos os meios.
Lutemos pela esperança!
Morramos por seus anseios!

Armas à mão, revolução!
A história jamais vai esperar
por quem não quiser lutar!
Só a força muda a nação!
.....
Afinal, o que deu errado?

Quadro Negro

Giz, lousa, regras a serem seguidas,
alunos herméticos em atenção estóica.
A vida são normas estabelecidas,
engolidas a seco em prontidão heróica.

Um bocejo desafia perigosamente a monotonia,
desabafo abafado de um sono irresistível.
Sobre mochilas corpos vencidos em sintonia
com um mundo externo quase impossível.

A aula, autônoma e alheia ao vitupério,
prossegue magnânima em seu enlevo.
Que pode a didática frente a tal império?
Poderia alguém tocar de Deus o dedo?


Bate

Bate coração de poeta.
Bate asas do meu ser.
Bate e se debate contra as palavras, vence a vida.

Escuta essa frase solta no vento.
Escuta o silêncio dos pássaros.
Escuta a voz que arde no seu peito.

Toma e escreve, e conta, e narra
a saga em que todos somos heróis.
Mostra e demonstra, solta a amarra,
me ensina a girar como os girassóis.

Levanta o lençol, descobre o medo,
acorda a criança que há em nós.
Mexe e remexe, sacode o zelo,
livra-nos da companhia de estar a sós.

A caverna é um abismo traiçoeiro,
saiamos dela, toquemos o mundo,
que ele se deixa tocar simples e fagueiro.

A porta está aberta, nunca se fechou,
nossos cavalos já estão preparados.
Basta abrir os olhos, largar o que ficou,
e seremos todos príncipes encantados,
princesas envoltas em lenços dourados.

Revisão Histórica

Se eu estivesse vivo...

o Holocausto jamais teria acontecido,
nem mesmo teria existido o Nazismo!

Escravidão teria sido trabalho bem remunerado com férias anuais!
Teria salvado cada índio, cada selvagem que habitava o Brasil!

Mata Atlântica seria a Grande Floresta Atlântica!
Nosso ouro seria nosso ouro! Nossa riqueza nossa riqueza!

Tiradentes teria sido conhecido como um bom dentista!
Nunca teria se ouvido falar em fogueira da Inquisição,
muito menos o fogo teria tocado Roma!

Todos nós poderíamos ler hoje os pergaminhos de Alexandria!

Cristo não teria sido crucificado,
Cain não mataria seu irmão Abel,
Eva nem mesmo tocaria a maçã!

Teria evitado todas as guerras, todas as pestes, todas as fomes!

Estaria na equipe de salvamento de todos os grandes desastres!

Nunca teríamos ouvido falar velhinha sem visita, doente sem acompanhante, nem criança
sem pai!

Mas infelizmente sou apenas um grande cínico.

Falta

Tem dia que o bolo quebra quando ia sair da forma!

Falta sal, açúcar, manteiga...
Ah como eu queria que de repente surgisse um pote cheio atrás de uma couve-flor...

É triste, mas plástico não vira manteiga.

Às vezes parece que essas faltas que dão gosto na vida,
ter tudo não deixa oportunidade pra reclamar de nada, ah.

É por isso que existe o pecado da gula. Gula é ausência de falta.

E como tem gente gulosa por aí!

Tem tanta gula que precisa fingir falta a falta que não tem! (ou será que era dor?)

Falta danada que faz não ter falta!

Dizem que se faltasse para todo mundo, todo mundo teria tudo!

É o mistério da falta.

Mas será que aí não surgiria alguém que não ia querer ter nada por ter tudo?

Outro mistério da falta.

Há quem diga que o homem é tanta falta que é buraco.
É por isso que a gente sente fome.

Mas eu acho que não é buraco não, acho que é poço.

É que ninguém sabe mais tirar água de poço, aí acha que é buraco, mas é poço, eu sei.

De vez em quando eu jogo uma pedra e se fico bem quietinho escuto o barulho da água
lá, lá embaixo.

É o mistério da água do poço do buraco da falta.

Eu já consegui um balde, descobri a falta que era suficiente pra buscar a falta que há lá
no fundo.

Um dia espero chegar na água.

Pandemia

Uma terrível doença acomete a humanidade.
Jornais noticiam que crianças estão morrendo!
Isso mesmo! Nossas crianças estão morrendo!

E estão morrendo em toda parte,
vítimas de uma peste sem controle.
Acionemos o mais severo alarme!
Lutemos antes que esse mal nos tome!

Não! Não! Jamais nos renderemos!
Jamais entregaremos nossos filhos!
Nossos pequenos, nossos meninos!

Que será do nosso povo? Que será do país?
Nunca aceitaremos um destino tão macabro!

Sim, corramos, compremos outras máscaras,
antes que o egoísmo se alastre!

Homenagem à Clarice Lispector

Essa mulher que come palavras com colher
e segura nas frases com as mãos!

Não lhe ensinaram que o sentido pertence ao dicionário?

Vocábulos são átomos sujeitos a regras,
gramática é a Física da literatura.

Não se pode sair assim juntando coisas.
É feio.

Corre-se o risco de inventar algo novo,
quem sabe perigoso e mortal.

Experimentos com palavras já provocaram reação em cadeia,
é preciso ter cuidado.

Ou pior,
nesse tempo de piratas e sequestro relâmpago,
imaginem se capturam e exigem resgate por alguma palavra estimada?

Por isso eu sempre acompanho minhas palavras
quando elas vão passear no parque.

Não convém deixá-las sozinhas um segundo sequer.
De noite eu as cubro e canto belas canções.
Sabe palavra só pega no sono acompanhada.

Graças a Clarice descobri esse hábitos estranhos das palavras.

Hoje eu também não as como com garfo e faca,
afinal pra participar desse banquete basta ter boca.

Papel de Bala

Bom seria se tudo na vida viesse em papel de bala.
Alguns puxões, um mover habilidoso de dedo,
e de repente um sabor barato nos invade e cala.
E o melhor: masca-se em público sem medo.

Por isso eu mastigo direitinho tudo a minha volta,
sou uma ilha cercada de mundo de todos os lados.
Mas nela não há flores, nem uma criança peralta,
nem é principado planetinha: na verdade é chato.

Isso porque não sou dono de nada, tudo é emprestado.
Por outro lado, não tenho trabalho com manutenção.
Imaginem se o Sol ou a Lua dependesse de aprovação
para esquentar do frio ou entreter um casal de namorados?

A vida seria complicada demais,
ser poderoso não traria vantagem.
Hoje tudo está a mão quando apraz
e ainda posso fazer muita bobagem!

Quem quer ser Deus se pode ser homem?
Se bem que ser anjo quebraria um galho danado.
Nesse trânsito cada vez mais congestionado
um par de asas teria sido muito útil ontem.

Mas enfim, a bala é de framboesa.

Parede de Vidro

Sinto a força da existência
como o despertar de um sono milenar.
Quebrou-se a parede de vidro, voar
é mergulhar na experiência.

Vesti-me com véu que cobria tudo,
nu como o primeiro Adão criado.
Coisas cochicham segredo mudo,
rico e pleno de significado.

A realidade foi pregada em minha carne
com os duros cravos do sentido.
Amanheço com o dia, entardeço com a tarde,
anoiteço em seus braços abatido.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Meus Heróis

Há tão poucos heróis hoje em dia...
Deve ser o monopólio da criptonita!
Com urânio empobrecido a ousadia
acaba ficando comprometida.

Talvez Macunaíma possa salvar
os cidadãos dessa pátria desvalida.
Dizem que se Mazzaropi voltar,
teremos nossa alegria prometida!

O rei negro, que se vestia de branco,
fez da euforia o silêncio mais profundo.
Um milagre às avessas: riso em pranto,
enquanto o futebol encanta o mundo.

Quem sabe se um tal Mickey Mouse
vier algum dia pisar esse pobre chão,
possa com seus poderes dar "pause"
nesse jogo de polícia e ladrão.

Ô guarani do pôr-do-Sol encantado!
Tem gente aqui querendo sua canoa!
Nesse trânsito tão congestionado,
navegar no esgoto até seria uma boa...

Mas já que aqui não tem tu vai tu mesmo,
o único herói que eu espero acordado
é aquele que agora espera sentado
a mudança que vem por ele mesmo.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Acredito que ser humano é nunca encontrar essa resposta em toda sua profundadidade ou mesmo compreender totalmente essa pergunta.

Não sou o que eu faço. Minha profissão é engenheiro da computação, mas não é o que sou.

Não é o que gosto de fazer. Adoro poesia, mas meus versos não me definem.

Não sou aquilo em que ponho minha fé. Ser católico não é o que sou.

Não sou minhas qualidades ou defeitos, não sou aquilo que tenho ou que deixo de ter, não sou meus sonhos ou meus desejos...

Quem serei eu então?

Serei talvez aquele sujeito que faz essa pergunta?

Mas as condições nas quais formulo a pergunta são tais que me escapam, então como poderiam essas me determinar?

O simples olhar auto-reflexivo não alcança jamais seu objeto, vemos fantasmas distorcidos num espelho fragmentado..

O ser humano é para si a possibilidade e a incógnita. Um conjunto de impressões difusas que jamais se integram...

Vivemos na busca...

Talvez seja essa busca que nos defina, ou quem sabe a intuição de que ela tenha um fim.

Talvez, apenas talvez, tragamos em algum lugar essa resposta, um lugar escondido, um lugar que ainda não somos capazes de acessar.

Talvez seja o movimento de viver que torna estranhos a nós mesmos...

Talvez os ponteiros do relógio da vida girem tão rápido, e cada vez mais rápido, que não somos capazes de dizer para onde eles apontam...

Quem sabe quando bater a última e eterna badalada poderemos enfim ter a resposta...

........................................
Sou formando de eng. elétrica ênfase da Computação na Escola Politécnica da USP em São Paulo e sou natural da linda capital da vale do paraíba, São José dos Campos.

Sou engenheiro nas horas não tão vagas e poeta em tempo integral. Bom pelo menos me esforço rsrs 

Grande abraço!

Contato: rmrosa@gmail.com